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Foto do escritorPsicº. Alan Müller

Eu e minha circunstância

Reflexão sobre a relação do homem com o seu mundo.

Circumstantia fora o termo empregado pelo filósofo espanhol Ortega y Gasset para descrever “as coisas mudas em nosso próximo derredor”. A circunstância conflui pelo cerne da existência humana e desta forma o homem habitualmente a margeia cegamente. Destarte, as circunstâncias figuram-se como uma atmosfera de possibilidades pela qual transita a vida humana. O mundo assoma-se como o total de virtualidades vitais que podem ser ativadas pelo indivíduo. Ao ser concebido, o homem é imediatamente trespassado pelas circunstâncias que emergem sobre si, as quais moldam e se deixam moldar pela imaginação criativa humana. O dilema da vida se constitui, então, no drama de exercer a liberdade de escolher aquilo que virá a ser no mundo, frente às questões impostas pelas circunstâncias. As circunstâncias demandam a todo instante uma decisão. Em vez de decidirem de forma arbitrária, as circunstâncias impõem dilemas a serem desvendados, e, como a esfinge de Sófocles (1994), ameaçam devorar aqueles que se abnegam a decifrá-las e que acabam escolhendo não escolher.


Édipo e a Esfinge

"Em vez de decidirem de forma arbitrária, as circunstâncias impõem dilemas a serem desvendados, e, como a esfinge de Sófocles (1994), ameaçam devorar aqueles que se abnegam a decifrá-las e que acabam escolhendo não escolher".



Diante deste contexto, Ortega (1967, p. 52) afirma, “Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela não salvo a mim”. Esta celebre frase do autor sintetiza a relação imbricada na conexão entre o eu e a circunstância. Ao dar-se no mundo, o homem é perpassado pelas mais diversas circunstâncias. Caso não as salve, ou seja, não as resgate por meio de uma reflexão, de uma análise circunstancial, ele se torna refém das mesmas. Assim, o resgate está no filosofar sobre as circunstâncias, está na indagação dos imperativos que a vida apresenta. Para o filósofo espanhol, somente recorrendo a estas indagações, refletindo sobre as circunstâncias que moldam o homem, é que será possível realizar uma escolha diante destas inclinações circunstanciais. Em uma perspectiva simbólica, as circunstâncias seriam como setas que apontam o caminho e guiam o homem cegamente pela senda da vida enquanto não forem submetidas a um questionamento interno.


Retomar as circunstâncias perfaz uma atitude de examinar a si mesmo, esmiuçando aquilo que forma a égide de seu ser. Em certo sentido, é colocar o mundo singular em análise, desvelando os sentidos que outrora foram concebidos, para que possa surgir uma nova perspectiva, uma nova visualização de perfil. Para tanto, Ortega utiliza-se do método descritivo fenomenológico de Edmund Husserl, empregando uma perspectiva na qual “o mundo se apresenta para uma consciência, não mais como ‘coisa’, mas como fenômeno e, portanto, como dotado de um conjunto de significados que incluem – de modo inalienável – todos os elementos da equação: sujeito, ato e mundo de fenômenos” (HOLANDA, 2009). Cada vez mais o passado torna-se presente, afluindo como uma imposição que demanda uma resposta. Sendo o mundo esta soma total de possibilidades vitais, cabe ao homem escolher ao que se ater e à qual parte da circunstância aprofundar para realizar o resgate de sua biografia.


"Sendo o mundo esta soma total de possibilidades vitais, cabe ao homem escolher ao que se ater e à qual parte da circunstância aprofundar para realizar o resgate de sua biografia".



Para Ortega, a circunstância é indissociável do eu, logo, ela implica diretamente na perspectiva da compreensão da realidade. Assim, o homem se encontra impossibilitado de abarcar a circunstância em sua totalidade, pois sempre estará imerso nela. Do mesmo modo que, as “lembranças de Husserl mais que relatos, são compreensões de como ele viveu a sua vida filosófica própria, os problemas imputados a ele e como se deram as conexões com a história” (HOLANDA; GOTO; DA COSTA, 2017). Esta justaposição ad aeternum do eu com a circunstância exige do homem a demanda de expressar sua razão vital a todo instante, impingindo sentidos à paisagem que se desvela, atualizando as infinitas virtualidades das vivencias. Como ressalta Husserl (2014, p. 113), “Toda experiência atual aponta para além de si, para experiências possíveis, as quais também apontam para novas experiências possíveis e assim in infinitum”. As circunstâncias se inserem como um horizonte de possibilidades frente a razão vital humana. Salienta-se que “é no horizonte que se descortinam as possibilidades de existência do ser, que se dão fundamentalmente na intencionalidade e na intersubjetividade” (HOLANDA, 2009), nesta dialética constante e mutável que perfaz o drama da existência humana.


REFERÊNCIAS

HOLANDA, Adriano Furtado. Fenomenologia e Psicologia: diálogos e interlocuções. Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, v. 15, n. 2, 2009.

HOLANDA, Adriano Furtado; GOTO, Tommy Akira; DA COSTA, Ileno Izídio. A Herança Fenomenológica: Memórias e Recordações de Edmund Husserl. Revista Ética e Filosofia Política, Número XX – Volume I, 2017.

HUSSERL, Edmund. Ideias para uma Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica: Introdução geral à Fenomenologia Pura. Tradução Márcio Suzuki. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2014.

ORTEGA Y GASSET, J. Meditações do Quixote. São Paulo: Iberoamericana, 1967.


 

Autor: Alan é Psicólogo (CRP-12/15759), atuando com psicologia clínica na cidade de Brusque - SC; Além disto é Escritor, Mestrando em Psicologia Clínica pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), graduado em Psicologia pela UNIFEBE, com ênfase em Prevenção e Promoção de Saúde, e graduado em História pela Universidade Paulista. Membro ativo do Laboratório de Fenomenologia e Subjetividade (LabFeno) da UFPR.

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